quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Soube-me a pouco

... foi o que li no mail do Joca. Ele talvez não saiba, mas essa frase é de uma canção bastante conhecida do Sergio Godinho. Uma musiquinha deliciosa, chamada "Brilhosinho nos olhos", música dos meus encantamentos com esta terra e sua cultura. Há anos atrás. Depois da euforia, a ressaca.

Não, não acho que esteja exatamente na ressaca, essa já passou, acredito. Estou na fase da habituação, mas há dias. Dias como o da semana passada em que fui às Finanças. Sim, no plural. Equivalente ao Ministério da Fazenda. Aqui há muitas coisas no plural, mas a delicadeza é, algumas vezes, singular, ou inexistente.

Primeiro, fui recebida por uma senhora, quase uma sombra atrás de um biombo, a me perguntar ao que vinha, quando disse que era para os recibos verdes, disse que sim, que eu podia entrar, indicou-me onde apertar para que me saisse a senha que me abriria as portas do balcão de informações e, se eu tivesse sorte, da burocracia equivalente ao registro de autônomo.

Com a crise, uma parte significativa da população portuguesa trabalha a recibos verdes (outro plural). O que quer dizer que as Finança ganham seu imposto, a Segurança Social ganha a sua contribuição, o recebedor dos serviços ganha os serviços sem se responsabilizar perante um sistema leonino que desincentiva a geração de empregos pelos particulares pelo peso que significa ter um empregado, e o prestador de serviço ganha remuneração e o dever de pagar isso tudo.

Entrei no local, havia uma senhora atendendo um rapaz, os dois sentados, um de cada lado de um balcãozinho baixo. Havia uma outra senhora, mais jovem, no guichê que corrrespondia ao de atendimento do número da minha senha, e um senhor que ora conversava com uma, ora com a outra e não atendia ninguém. Fiquei vinte minutos ali, conversando com a amiga portuguesa que, casualmente, acompanhou-me. Nesse tempo, a senhora mais jovem desapareceu e o senhor também, restando apenas a outra senhora sentada a atender o rapaz.

Como nada acontecia no painel luminoso e eu comecei a imaginar que seria ignorada permanentemente, dirigi-me àquela alma cujo o corpo é mantido com os impostos que eu pretendo pagar e com os que toda a massa trabalhadora regularmente deposita ao fisco. A alma, porém, mora em um corpo controlado por uma mente que decididamente ignora esse fato da correlação entre o salário da dona e os impostos pagos pelos utentes daquele serviço que ela, a alma, deveria fornecer de boa vontade e com um mínimo de competência.

Quando eu tomei a palavra, a dona da alma, resistiu muito a responder, dizendo que estava tudo fechado, que nada estava funcionando e que havia apenas ali um PAP para alguns assuntos. Perante a minha insistência, ela disse que estava atendendo o rapaz, eu respondi que estava vendo, mas que como não havia recepção, eu queria apenas saber se tinha esperança de ser atendida, ela voltou a dizer que estava tudo fechado e que o PAP, etc, etc. Eu a interrompi e disse ao que vinha, ela respondeu que isso T-A-L-V-E-Z pudesse ser atendido, mas que eu tinha que esperar. Eu usei o meu melhor tom de moça fina, com um carregado e exageradamente suave sotaque de carioca, para responder que iria esperar e agradeci, virando as costas para me sentar.

Mais tarde, essa mesma alma me atendeu, bufando, e diante da minha indiferença pela sua ira, começou a dizer que eu tinha olhos e não via e ouvidos e não escutava pois tudo que eu tinha lhe perguntado estava afixado algures nos balcões. Eu persisti na minha indiferença, pois tenho decidido todos os dias que vou resistir ao meio quando ele for hostil, uma vez que tenho muitas experiências interessantes para contar. Ela, finalmente, vitoriosa, verificou que eu não tinha o NIB (número que é um misto de banco/agência e conta bancária) e mandou-me procurar um multibanco (caixa eletrônico) a uns 600 metros dali, para verificar o tal NIB. A minha amiga não se intimidou e disse, nós vamos e voltamos, isto não fica assim. Ao sair do local, descobri que bastava atravessa a rua para encontrar um caixa. Será que ela não sabia?

Voltei. Agora era o tal senhor colibri que passeava entre as flores que estava atendendo. Mas a outra alma mariposa, andava esvoaçando não muito longe. Ao ver o endereço no A4 do meu Número de Contribuinte, o senhor perguntou descaradamente: "Rua Ilha dos amores?", eu ainda não totalmente calejada, achei que ele tinha simplesmente, como a maior pare das pessoas, achado pitoresco e curioso o nome da rua. Ledo engano meu. Como a rua fica em um bairro de classe média alta, ele aparentemente achava que eu tinha posto o endereço mas não morava lá, pois a seguir perguntou "Conhece?" ao que eu respondi "Sim, é lá que eu moro, como pode imaginar". Claro, como brasileira, eu não poderia morar lá, deveria ser o endereço da patroa, e eu, mulher a dias, certamente estava morando de favor em algum albergue, ou quem sabe, fazia bar de alterne nas noites ociosas.

Quando eu respondi que morava lá, o senhor vira-se para a minha amiga e diz com deboche "Ela tem dinheiro". A seguir, e porque a vida é quase sempre irônica, entra um grupo que precisa de informação e interrompe o senhor que está me atendendo. Ele pede desculpas para responder-lhes, a mariposa acompanha a troca e contribui com comentários e eu olho para a cena sorrindo e lembrando da atitude tão diferente da mariposa quando eu fiz exatamente o mesmo que o grupo que, aliás, tinha muito mais assuntos a tratar do que a simples pergunta que eu tinha esboçado alguns minutos antes. Acho que eles entederam perfeitamente o recado irônico, mas duvido que tenham levado em conta ou se envergonhado pelo modo como eu tinha sido atendida, tão diferente do modo como então estavam atendendo aquelas pessoas que, como grande diferencial em relação a mim, tinham o sotaque e o tempo de residência no país.

O atendimento terminou bem e bastante rápido. Teria sido ainda mais rápido se o senhor não tivesse contado duas piadas de alentejano. Sim, eles têm os seus baianos, e acham a coisa mais natural do mundo fazer piadas discriminatórias, mas ai de quem fizer algo nesse sentido com eles. Ao sair, agradeci ao senhor. A mariposa rondava. Minha amiga aproveitou e deu uma espetadinha final. Levantou-se, agradeceu e insistiu: "Muito obrigada pela sua atenção e boa vontade" e olhou firmemente para a mariposa. Fim da cena.

Bem, não vou me estender, pois tenho malas para fazer. Na próxima, continuo e conto como um especialista em informática que eu só conheço da web se refere à comunidade de brasileiros em Lisboa e me faz ressentir ainda mais o meu caráter alienígena atual.

4 comentários:

Lóri disse...

Queridos ouvintes, deixei um recadinho para vocês como comentário da outra postagem!

Rob disse...

Se não fosse pelo final feliz seria kafkiano. Espero que você vença os preconceitos e plurais sempre com um brilhosinho nos olhos.



Bom ver teu blog tão cheio de palavras e sons. Enquanto isso aguardo ansiosamente o epíteto do especialista de informática.

Luis Eme disse...

que bom ter-te por cá de novo.

por cá agora também há o estigma dos "brasileiros"...

o desemprego, o aumento da violência, faz com que se olhe de lado, Lóri...

bjs

joca disse...

..contudo, Lori - soube-me agora que escrevi um mail, assim? Hummm..., não me lembro e também não conhecia essa canção do Godinho, linda linda e o povo que inspira uma canção dessas, inspira também esperanças!
Mas, conte as histórias e afie as garras!

bjs,